Passei muito tempo procurando palavras para circunscrever a inquietação
que essa leitura me causou. Sim, é um livro sobre a guerra, mas o que é transmitido
entre as linhas aponta para algo além da guerra – esse além, que reverbera em
cada um de nós, resulta de um audacioso trabalho de construção feito por Svetlana
Aleksiévitch. A escritora, ao eleger os elementos que iriam compor sua obra,
exerceu uma função bastante singular no processo: atuou recolhendo restos
discursivos – e terminou situando os leitores diante de uma dimensão outra dos
discursos. Isso não nos dá notícias do nosso fazer, enquanto psicanalistas?
A guerra não tem rosto de mulher é um livro construído em torno de uma
transmissão de relatos orais. Em seu percurso de escrita, Svetlana abriu os olhos e
os ouvidos para selecionar aquilo que não se ocultava por trás de uma “voz
masculina” – que predominava nos registros sobre a Segunda Guerra Mundial. Os
relatos escolhidos por ela possuem contornos diferentes daqueles antes divulgados
e já conhecidos – escrevem-se nas margens de uma grande História, revelando
pequenas histórias singulares, experienciadas por mulheres que estiveram nos
fronts de batalha. Vemos como a grande História sobre a guerra – situada como a
narrativa oficial sobre a guerra – é linear, totalizante e se sobrepõe às pequenas
histórias. Essas últimas, ao brotarem das brechas de discursos até então
predominantes, se escrevem em suas margens – são as narrativas marginais.
Esses ditos marginais, que entram em rota de colisão com os oficiais, são os que
interessam aos psicanalistas; foi por eles que a autora se interessou – e é neste
ponto que entendo que os trabalhos de ambos se encontram, que convergem em
uma questão: o que fazer com os restos discursivos que não se encaixam nas
narrativas oficiais?
A autora conta que os editores não sabiam o que fazer com seu livro – não
sabiam o que fazer com isso que não pertencia à História oficial da Vitória. Por
muito tempo, nem ela soube – mas continuou ouvindo, guardou os registros do que
ouviu e reuniu pilhas de palavras ao longo dos anos. Dessas pilhas, embora
reconheça que muito se perdeu no trabalho de transcrição, recolheu aquilo que
outros não estavam dispostos a ouvir – falas que não eram levadas a sério, ditas
por mulheres que, incentivadas ao silêncio, foram questionadas sobre a veracidade
de suas vivências e memórias. Svetlana não estava interessada em ouvir sobre os
grandes feitos da guerra; estava buscando outra coisa – e isso possibilitou que ela
ouvisse ruídos de que ali havia algo que, embora indizível, não era todo feito de
silêncio. Nesse contexto, priorizou narrativas permeadas de música, sentimentos,
cheiros, cores, sonhos, silêncios, desejos, detalhes, coisas ínfimas, aparentemente
desimportantes – mas que, nem por isso, escondiam sua face de horror.
Foi dito que “mulheres tendem a enfeitar as coisas”, que inventam, que seus
relatos não são concretos, mas carregados de sentimento e de brilho. O que era
invenção? O encontro com o belo, no meio de um acontecimento extremo e
destruidor? Muitas delas falavam sobre como o céu estava bonito e lembravam do
cheiro das flores – queriam ficar acordadas para ouvir o som dos pássaros na
manhã do dia seguinte, que poderia ser o último. Algo nelas resistia e insistia
quando a vida parecia morta, quando a humanidade parecia morta, quando parecia
não haver mais nada – é aqui que percebo Svetlana ouvindo ruídos emergindo das
brechas, catando os restos. Não surpreende que esses restos tenham incomodado
aqueles que buscavam manter a narrativa oficial intacta – foi dito que ela estava
manchando a imagem da mulher soviética. Que mancha seria essa? Aquela que
desvelava um ódio que atravessava suas entranhas? Ou aquela que revelava a
emergência de um desejo de morte do outro, do sofrimento do outro? Ou aquela
que confessava prazer na morte do inimigo? Ou aquela que dizia ter sido feliz na
guerra? Ou aquela que dizia que matar era mais difícil do que morrer? Ou aquela
que se importava com bobagens de mulher? Estaria a mancha na vergonha de não
conseguir matar? Ou em ter oferecido conforto para um inimigo antes da morte?
Talvez, essa mancha estivesse nas fantasias com a aparência do próprio corpo
morto – no medo de ser ferida no rosto, de morrer feia.
A maioria desses relatos é de grandiosidade ausente – renunciam à glória da
vitória, ao heroísmo; falam de amor, ódio, dor, nojo, pequenos detalhes do dia a dia
de um humano na guerra. Dentre os fragmentos, lemos sobre a neve que derretia, o
cabelo que congelava, a fome, os cheiros – de sangue, da morte, da terra, das
flores, do tabaco; as cores – e a prevalência do vermelho, quase sempre o vermelho
como marca de um trauma, como uma cor difícil de suportar. Há quem fale sobre a
sujeira e a vontade de estar limpa; sobre o incômodo com a falta de roupas íntimas;
sobre a dificuldade com o tamanho dos uniformes e sapatos, grandes demais; um
pequeno relato sobre um vestido branco – um vestido de noiva, feito de ataduras –
mostra como a vida surgia nos detalhes. Segundo a autora, “elas não se lembravam
tanto das ações, mas da vida”.
O que foi experienciado na guerra marcou seus corpos, se escreveu na
carne, deixou buraco. Lemos sobre um coração com cicatrizes desconhecidas,
causadas por infartos não percebidos, sobre corpos que pararam de menstruar,
sobre pedaços de corpo que foram perdidos: “perdi a voz”, “perdi as lágrimas”,
“perdi o desejo”, “deixei de ser mulher”, “meus cabelos perderam a cor, ficaram
brancos”, “cortaram minhas tranças”, “eu era bonita”, “parei de brincar”, “minhas
pernas paralisaram”. Há quem fale sobre abuso, assédio, gravidez, aborto, e sobre
uma uma mudança de fisionomia tão extrema que o reconhecimento de si no
espelho se tornou impossível.
Como não pensar no nosso fazer, enquanto psicanalistas? Muitos daqueles
que recebemos em nossos consultórios chegam impregnados de narrativas oficiais,
aprisionados em construções discursivas de si e do outro que, muitas vezes, estão
tão enrijecidas que dificultam outra coisa além. Bom, estamos advertidos de que há
algo além: quando esses sujeitos nos contam suas narrativas oficiais, nos
interessamos em ouvir aquilo que emerge das brechas, aquilo que falam suas vozes
dissidentes – e então, apontamos as contradições entre sua grande e pequena
história, para que outra história possa começar a ser escrita. O que vai abrir espaço
para a escrita de uma narrativa marginal, é o conflito entre as diferentes versões de
uma mesma história; é o reconhecimento de um outro em si mesmo; é a divisão
entre fazer algo, desejando ter feito outra coisa; são os tropeços linguísticos que
irrompem de súbito na fala, revelando algo diferente do que se intencionava dizer;
são os buracos na memória; são as palavras que faltam, ou aquilo que falha no fio
narrativo – tudo aquilo que o velho Freud descobriu nos sonhos, nos lapsos, nos
esquecimentos, nos sintomas, nos chistes, nos atos falhos.
O inconsciente não está em um lugar escondido e obscuro da mente, está
“nas latências do discurso” – isso aprendi com Lacan. Em um trabalho de análise,
não tratamos de desvendar o inconsciente, mas de produzi-lo através de uma
construção discursiva – que vai acontecer na relação entre analista e analisante.
Contar outra história tem seus efeitos; assim como contar a mesma história sob
outros olhares, ou a partir de um outro lugar, ou com novas palavras – essas
danadinhas fazem muro, mas também abrem portas. Essas aberturas de portas, por
vezes, vão se dar com algumas gambiarras linguísticas, em rebelião aos modos
“oficiais” de se narrar. Cada vez mais, penso que o trabalho de análise é uma coisa
meio clandestina – mas falarei dessa clandestinidade em outro momento. Por ora,
ficamos com aquilo que falam as vozes dissidentes para, com restos discursivos,
forjar gambiarras que nos possibilitem atravessar portas antes fechadas – que nos
seja possível escrever algumas histórias do outro lado!