Frequentemente, @manoelismos compartilha algo que me faz sorrir. Não importa quantas vezes eu leia “O menino que carregava água na peneira” – um sorriso sempre brota. Até porque, repare bem, o traçado desse escrito é bonito que só: há uma mãe, que cobriu o corpo do filho com um olhar de ternura e nomeou seus despropósitos: vai ser poeta; e há um filho, que coberto de ternura e com os despropósitos nomeados, fez peraltagens com as palavras.
Cenas entre mães e filhos podem parecer simples aos olhares cotidianos, mas tenho pra mim que carregam em si uma verdade humana bastante significativa: a nossa constituição psíquica está diretamente ligada aos cuidados de um outro – e, também, às suas palavras.
Tudo começa com um despropósito – ou, como diz o nosso grande livro de significados, o dicionário: um disparate, um desatino, um sem sentido. O despropósito é dessas palavras indomáveis que não fazem muita questão de disfarçar sua inadequação; é desses aglomerados de letras que não se acomodam nem escondem bem seus vazios; é dessas junções de sílabas cujo sentido não se contenta com a imobilidade – precisa se movimentar.
O olhar de ternura da mãe reparou que o filho gostava mais do vazio do que do cheio. A palavra da mãe contornou o vazio do filho: vai ser poeta; e movimentou seus despropósitos: vai carregar água na peneira a vida toda. A mãe dançou com as palavras para transmitir que carregar água na peneira era como roubar o vento, catar espinhos na água, criar peixes no bolso – não buscou transmitir significados fechados, deixou aberturas. O filho, então, dançou com as próprias palavras nos espaços deixados pela mãe, descobriu que carregar água na peneira era o mesmo que escrever. O filho transformou, assim, seus despropósitos de menino em peraltagens de poeta.
Comecei a escrever esse texto pensando na nossa baixa tolerância aos despropósitos, como se tudo precisasse ser racionalizado ou delimitado. Queria aproveitar o gancho para escrever sobre o processo de análise e seus movimentos, sobre “desarrumar a linguagem” para dançar em suas aberturas – como bem disse o poeta. Escrevi, mas não falei sobre psicanálise – ou será que falei, não escrevendo?