Nas primeiras sessões de análise com Lacan, Susanne conta sobre os horrores vividos durante a guerra e no pós-guerra. Ela acreditava que, através da análise, poderia se livrar das dores causadas por aquilo que viveu. Ao questionar Lacan se seria possível se curar daquele sofrimento, ela diz que entendeu – pelo olhar de seu analista – que não, que era impossível se livrar de algumas dores.
Em outra sessão, ela conta um sonho e diz: “acordo todos os dias às 5h – era às 5h da manhã que a Gestapo invadia a casa dos judeus”. Lacan rapidamente se levanta de sua poltrona, vai em sua direção, e suavemente passa a mão em seu rosto – fazendo um carinho. Susanne conclui: ele me deu um “geste à peau” – que, literalmente, pode ser traduzido como um gesto na pele.
Esse fragmento de análise, narrado em pouco menos de 2 minutos¹, mostra que Lacan “transformou Gestapo em geste à peau”, um gesto carinhoso, que segundo ela a surpreendeu, mas não diminuiu seu sofrimento – fez outra coisa. A prova da efetividade dessa outra coisa era o fato de ainda estar narrando aquele acontecimento: “40 anos depois eu ainda sinto esse gesto, eu ainda o tenho no rosto” – foi um gesto que fez “um apelo à humanidade”.
É um fragmento bonito, mas um tanto extraordinário – afinal, o dia a dia da clínica é permeado de intervenções mais sutis; inclusive, tocar inadvertidamente o corpo do outro tem lá suas complicações. Além disso, neste breve relato, não fica claro se, em algum momento, Lacan falou “geste à peau” para ela ou se Susanne fez um trabalho de tradução posterior – do alemão, sua língua materna, para o francês, língua falada em análise.
Recentemente, soube que ela não somente é psicanalista, como também trabalhou com traduções – inclusive traduzindo textos de Freud, do alemão para o francês. Em um artigo², esse fragmento de análise foi situado de outro modo, à luz dos três tempos lógicos de Lacan – o que torna a conclusão sobre o gesto de seu analista um pouco menos instantânea do que a entrevista de 2 minutos faz parecer.
Susanne conta que o gesto de Lacan veio sem palavras e que, logo em seguida, ele cortou a sessão. Então, “geste à peau” como um dizer, como um acontecimento que transformou algo, não se deu ali, no momento em que Lacan cortou a sessão – veio só depois, em retroação.
Num primeiro tempo, “fiquei siderada, emocionada” – ela não soube dizer do acontecimento, mas o acontecimento a co(moveu).
Em um segundo tempo, “decompus a palavra geste à peau” – o mais interessante aqui é que ela não fez essa tradução sozinha, uma amiga participou do processo.
Em um terceiro tempo, anos depois, “pude mensurar o que esse ato de interpretação havia transformado em mim” – é na entrevista de dois minutos que a vemos mensurando os efeitos deste ato.
Então, embora se trate de um exemplo – insisto, extraordinário – que pode nos fazer pensar na genialidade de Lacan, também é importante considerar “que muita água passou debaixo dessa ponte” para que “geste à peau” pudesse se escrever do outro lado de Gestapo.
¹ • Depoimento de Susanne Hommel, em “Um encontro com Lacan” – disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fsE8UuTnNpw
² • Susanne Hommel, 2022 – Uma história de família no tempo do nazismo – Revista da EBP, n. 87